Bem-casados

Acompanhar uma história nos faz mergulhar em outras realidades e melhor compreender o ser humano. Nesse mundo diluído em um mar de informações que chegam a todo instante, contemplar uma obra de arte pode ser transformador.

Bem-casados é uma pequena seleção de filmes e séries tendo em comum os conflitos difíceis de serem compreendidos e sobre os quais pouco conversamos. Tramas que apresentam pessoas vivendo no limite, quase não suportando ou não sabendo lidar com a própria realidade.

Apesar das dores e dificuldades de ser assim, os filmes mostram o lado belo e transformador dessas figuras que protagonizaram e mudaram o próprio tempo, seja no âmbito mais íntimo ou até universalmente.

 

The crown/Downton Abbey

Tradições, propriedades, famílias, tudo está em transformação constante. Essas duas séries escolhem a monarquia britânica como pano de fundo para observar o ser humano em processo de aceitação das próprias mudanças. Costumes, certezas, casamentos, tudo vai sendo repensado no decorrer dos episódios.

Enquanto Downton Abbey se passa em uma pequena propriedade rural, apresentando os dramas de uma família aristocrata no reinado de George V, The crown se passa no epicentro de Londres, tendo como protagonista a própria rainha recém-coroada Elizabeth II.

Apesar de os seus personagens viverem submersos em protocolos, as pequenas contravenções que fazem à ordem vigente ganham uma repercussão enorme dentro da sociedade como um todo. Os nobres, sendo constantemente observados pelos plebeus, ditam moda e comportamento.

Ambas as séries nos fazem atentar para a mudança dos tempos agindo na tradicional Inglaterra do último século. Impossível não pensar em nossas próprias mudanças e em como elas reverberam naqueles que nos são próximos.

Interessante notar que, apesar de tratarem de um mundo com normas tão rígidas, o humor britânico prevalece, trazendo leveza para ambas as séries.

 

What happened, Miss Simone?/Janis: little girl blue

O que esperar de documentários que trazem Janis Joplin e Nina Simone ao centro da tela? Gravações inéditas, trechos de cartas, conversas com amigos e familiares, cada filme compõe, à sua maneira, um caleidoscópio de dores e delícias dessas duas lendas da música. Focados não apenas na carreira de artistas geniais, mas também na saga de mulheres que não se adaptaram à ordem vigente.

Dirigido por Liz Garbus, o longa sobre Nina Simone teve elogiadas passagens pelos festivais de Berlim e Sundance. Episódios como a ligação de Nina com a causa racial e com a violência doméstica são cruciais para entendermos os afetos conturbados desse mito do jazz que nos deixou gravações inesquecíveis, como Ne me quitte pas e Here comes the sun.

Enquanto Nina teve uma vida longa, Janis Joplin morreu aos 27 anos. Idade fatal também para ícones como Jim Morrison, Jimi Hendrix e Amy Winehouse. As cartas que Janis Joplin escreveu para amigos e familiares costuram com rara poesia esse documentário dirigido por Amy Berg.

Um bem-casado de filmes nos quais a indústria do entretenimento é vista sob a perspectiva da mulher, do álcool e da dor. Em ambos, prevalece a imortalidade da música.

 

A garota dinamarquesa/Meninos não choram

Ambos os filmes acompanham a saga de um ser humano em assumir sua identidade de gênero. São personagens em desacordo com as normas e que sofrem no corpo a dor de ser diferente.

Em Meninos não choram, filme de 1999, acompanhamos Teena Brandon em uma inóspita Nebraska tristemente captada por Kimberly Peirce. A menina Teena passa por todo tipo de humilhação para se tornar o rapaz Brandon. Com um orçamento baixíssimo e uma trama polêmica, o filme foi sucesso de público, consagrando Hilary Swank com o seu primeiro Oscar de Melhor Atriz e fazendo com que a afetividade trans fosse debatida ao redor do mundo.

A garota dinamarquesa, de Tom Hooper, retrocede ainda mais no tempo, viajando até 1926. Eddie Redmayne vive Eider Wegener, um pintor casado com a mulher que o fará aflorar para a possibilidade de ele também ser mulher. Assim como Meninos não choram, A garota dinamarquesa é também uma história com personagens profundamente encantadores, controversos e que nos fazem repensar nossos próprios conceitos sobre o que significa ser homem ou ser mulher hoje em dia.

 

Castanha/Laura

Duas figuras vivendo a noite em uma grande cidade. Castanha, em Porto Alegre. Laura, em Nova York. Ao seu jeito, cada um percorre lugares de sonho, onde o sorriso está sempre em primeiro plano. Ambos os filmes foram captados pelo olhar sensível de diretores em primeira incursão pelo mundo dos longa-metragens: Davi Pretto e Fellipe Barbosa.

Manhattan é o centro do mundo para Laura, mulher que luta em fazer parte da roda da fama e do sucesso no mais disputado metro quadrado do showbusiness mundial. O glamour das noites de estreia de filmes de Hollywood contrasta com a situação que Laura enfrenta no dia a dia, vivendo em um minúsculo apartamento, tendo problemas com os vizinhos, com a falta de dinheiro e, até mesmo, com o filme que está sendo feito sobre ela.

Castanha, por outro lado, é um senhor que flana travestido pelas ruas de Porto Alegre. O mais famoso e, talvez, o mais longevo transformista da noite gaúcha, vive os dramas da terceira idade enfrentando problemas financeiros. Em casa, a mãe idosa, uma doença estigmatizada e incurável, o cachorro, a falta de espaço. Tudo parece ser desconforto quando o dia nasce e a realidade toma conta. Mas à noite, a alegria e o brilho nos palcos, a plateia e as músicas são capazes de salvar Castanha. Enquanto houver noite, bares e gente disposta a vê-lo dançar, o velho não vencerá esse menino que vive dentro de si.

Castanha e Laura são pontos de luz. Pequenos lugares de resistência em um mundo cada vez mais carente de poesia.

Fichas técnicas

What happened,
Miss Simone?

Direção: Liz Garbus
e Hal Tulchin

101 min

EUA, 2015

Disponível em: Netflix

Downton Abbey

Criação: Julian Fellowes

6 temporadas, 52 episódios

Reino Unido, 2010-2015

Disponível em: Now

The crown

Criação: Peter Morgan

4 temporadas, 20 episódios

Reino Unido e EUA, 2016

Disponível em: Netflix

Janis: little girl blue

Direção: Amy J. Berg

103 min

EUA, 2015

Disponível em: Netflix, Now

A garota dinamarquesa
(The Danish girl)

Direção: Tom Hooper

119 min

Reino Unido, EUA, Alemanha, Dinamarca
e Bélgica, 2015

Disponível em: Netflix, iTunes

Laura

Direção: Fellipe Barbosa

77 min

Brasil, 2013

Disponível em: Now

Castanha

Direção: Davi Pretto

95 min

Brasil, 2014

Disponível em: Now

Meninos não choram (Boys don’t cry)

Direção: Kimberly Peeeirce

118 min

EUA, 1999

Disponível em: iTunes

Ismael Caneppele
Ismael Caneppele

É autor de cinco livros publicados, entre eles Os famosos e os duendes da morte (2009), A vida louca da MPB (2015) e Só a exaustão traz a verdade (2014). Roteirizou o longa-metragem Os famosos e os duendes da morte (2010), dirigido por Esmir Filho. Em 2016, dirigiu o documentário Música para quando as luzes se apagam.

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