Somos todos migrantes (só que não)

Foto: Alexandra Lucas Coelho

1. Tenho um amigo que há anos tenta deixar a Faixa de Gaza e não pode. Não pode porque é palestiniano de Gaza. Não pode porque Gaza é uma estreita faixa de 40 quilómetros de comprimento por seis a dez de largura onde 2 milhões de pessoas estão presas há gerações. A geração dos pais dele já estava presa. A geração das três filhas dele continua presa. As três filhas estão a ficar adultas sem nunca terem posto um pé fora destes 40 quilómetros. Para não falar das bombas, das mortes, da falta de cuidados médicos, da água potável já contaminada, da electricidade que só há três horas por dia, do emprego que não há. Para não falar de que toda a gente está a ficar maluca, além de toda a gente ter perdido gente, ou tudo. Gaza é um inferno, um hospício, mas acima de tudo uma obscenidade. O espelho onde a humanidade pode ver o pior de si mesma: permitir que isto continue, à vista de todos os governos, todos os assinantes das resoluções internacionais que há décadas condenam a ocupação israelita.

O meu amigo de Gaza, que é farmacêutico e fala excelente inglês, podia emigrar, arranjar trabalho em qualquer lugar do mundo. A mulher, que borda bolsas, panos, roupas, podia trabalhar em qualquer lugar. As três filhas, já falantes de inglês, podiam estudar em qualquer lugar. Mas não podem porque não podem ir a lugar nenhum. Não têm país, e não têm liberdade de movimento. De resto, os palestinianos são a única nacionalidade do mundo sem país e com mais de cinco milhões de refugiados registados há décadas.

Então, somos todos emigrantes, imigrantes, de alguma forma migrantes. Só que não. De várias formas, não. Gaza, como todos os lugares de onde as pessoas são impedidas de sair, é uma dessas formas.

2. Ixtepec. Em poucas situações foi tão difícil ser repórter. Não porque rebentavam bombas, como em Gaza ou Bagdad, mas porque eu não conseguia parar de chorar estupidamente, à vista daquela quantidade de gente tão corajosa, que chegara ali para escapar ao pior, mas a partir dali tinha grande chance de morrer: homens, mulheres, crianças, bebés, recém-nascidos.

Ixtepec é o pontinho da Terra onde os migrantes centro-americanos — El Salvador, Guatemala, Honduras… — desaguam para tentarem chegar aos EUA. Fica no sul do México. Migrantes acossados pela violência nos seus países e pela falta de trabalho entram ilegalmente no México e afluem a Ixtepec, de onde partem os trens para Norte. Ali estavam, cercados por uma chuva imensa, ao abrigo de um padre que é uma espécie de guerrilheiro dos direitos humanos. Iam enfiar-se por baixo do trem, pendurar-se no trem, e se não morressem iam ser sequestrados pelos gangues mexicanos, escravizados, violados, e se não morressem iam chegar à fronteira com os EUA para talvez morrerem de sede no deserto, senão degolados, alvejados em Ciudad Juárez, a mortal cidade de fronteira. Em Juárez, vi um medo como talvez nunca tenha visto, nos olhos, na cara, no alerta. Porque em 2010 simplesmente mais pessoas estavam a ser mortas ali por dia do que no Afeganistão.

O México é uma guerra terrível. El Salvador é uma guerra terrível. Guerras não-oficiais, que convêm a muitos interesses, sem mediadores, sem resoluções internacionais. O fluxo migratório que vem da América Central, passa pelo México e tem como objetivo os EUA é não só um dos maiores da história humana como dos mais trágicos.

E são estas pessoas que Trump agora quer — em muitos casos, vai — mandar para trás, para a morte, ou barrar com um muro. E foi essa espécie de doente, tão ignorante quanto autoinsuflado, que o país mais poderoso do mundo elegeu para presidente, numa fase da história em que nunca tantas pessoas precisaram de ser acolhidas e não são.

Em Gaza precisam de migrar e não podem. Na América Central precisam de migrar e ficam a meio caminho. Nos Estados Unidos já migraram e estão em risco de expulsão.

Então, mais uma vez, somos todos migrantes, porque todos viemos de algum lugar. Só que não. Porque alguns de nós têm uma vida o bastante para não terem de partir. Outros de nós podem não ter tudo isso mas migram sem entraves. E ser branco adianta. E ser muçulmano ou negro atrasa.

3. E quando entramos no número dos refugiados, a desigualdade acentua-se. A ONU conta mais de 65 milhões de pessoas deslocadas à força, 22 milhões das quais refugiadas, metade das quais com menos de 18 anos. Fogem em primeiro lugar da Síria, depois do Afeganistão, em terceiro do Sudão do Sul. Mas os primeiros países que os acolhem não estão na Europa nem na América. Estão em África, no Médio Oriente, na Ásia Central.

4. Logo após o 11 de Setembro, um milhão de afegãos refugiou-se no Paquistão, antecipando a resposta dos EUA, a guerra que se seguiria. Quando cheguei lá, os repórteres não só eram impedidos de passar a fronteira para o lado afegão como de aceder a muitos campos de refugiados. Cheguei clandestinamente a um com a ajuda de afegãs que já tinham nascido refugiadas ali, de conflitos anteriores. E clandestinas eram as escolas, as oficinas de artesanato onde elas tentavam que outras pudessem estudar, trabalhar em algo que as fizesse independentes. Guerrilheiras da ação não-violenta, como tantos que encontrei entre migrantes e refugiados pelo mundo.

5. Síria. Difícil de conceber a que ponto o país que vi em 2009 já não existe, essa mistura de Mesopotâmia, Roma, Grécia, cristandade, arte islâmica, toda uma história humana. E quantos daqueles músicos no souk de Aleppo, daqueles estudantes em Palmira, daqueles meninos que mergulhavam no Eufrates, quantos estarão vivos, quantos em campos de refugiados, às portas da Europa, ou a tentar chegar por exemplo ao Brasil?

6. Chegando ao Brasil para morar, em 2010, uma das minhas alegrias foi ver tanto DNA cruzado, índio, negro, branco de várias Europas, árabe, japonês. Ver como ser judeu e muçulmano não era uma oposição, sequer uma questão. Depois, claro, à medida que vamos morando no Brasil, o racismo emerge com todas as suas caras e jeitos, herdeiro de 300 anos de colonialismo. A própria miscigenação assenta na violência.
A elite usurpadora, herdeira dos escravocratas, governa.

Isso dito, a existência do Brasil, feita de tantas idas e vindas, continua a ser uma promessa do mundo. E só o Brasil a pode resgatar.

Alexandra Lucas Coelho
Alexandra Lucas Coelho

É uma escritora e jornalista portuguesa. Desde o começo dos anos 1990, cobriu várias zonas de conflito, da ex-URSS ao México, passando pelo Oriente Médio. Tem nove livros publicados. Dois têm como tema o Brasil, onde morou por alguns anos como correspondente: a coletânea de crônicas Vai, Brasil (2013) e o romance Deus-dará (2016).

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