O poeta pop

Você pode nem saber, mas certamente conhece o trabalho do poeta Antonio Cicero. É ele o autor de grandes sucessos da música brasileira, como Fullgás e Virgem (parcerias com a sua irmã Marina Lima), Último romântico (parceria com Lulu Santos e Sergio Souza) e Inverno (parceria com Adriana Calcanhotto). Além de letrista, Cicero é poeta e filósofo, e acaba de ser eleito para a cadeira 27 da Academia Brasileira de Letras. Conversamos com ele em sua casa, em Botafogo, dias depois da cerimônia de posse.

 

Foto: Pedro Colombo/ @pedrogcolombo

 

O que muda na sua rotina com a entrada para a ABL?

A rotina não muda muito. Eu tenho que ir à ABL às quintas-feiras, numa reunião em que se discutem vários assuntos e se fazem propostas sobre ações, acontecimentos, eventos na própria ABL. Terça-feira também há uma reunião e, em geral, tem havido conferências. E já gostava de assistir a essas conferências, mesmo antes de entrar na ABL. Fora isso, a minha principal preocupação é terminar um livro que é uma complementação do meu livro de filosofia chamado O mundo desde o fim, que trata do conceito de modernidade. Quero esclarecer e combater essa tendência antimoderna que vejo no mundo de hoje, tanto na esquerda quanto na direita. Para mim, fazer isso é muito importante. Mas, feito isso, que acho que é o meu dever, quero me dedicar ao que eu realmente amo, que é a poesia.

Você diz que ela é ciumenta, não deixa você se dividir muito.

O que ocorre é que o mundo em que nós vivemos é baseado sobretudo no princípio utilitário — para quê serve isto, para quê serve aquilo etc. Já a poesia, é como se fosse uma outra maneira de apreender o ser. As coisas podem não servir para absolutamente nada e, no entanto, serem uma maravilha: assim é um poema, assim é uma obra de arte. A poesia ensina você a olhar para as coisas de outra maneira. Assim ela enriquece a sua vida.

No seu discurso de posse da ABL você disse que gostaria de contribuir para a construção do cânone.

Eu acho que a ABL pode contribuir porque reúne uma porção de notáveis, muitos ligados à literatura. E ela não é financiada nem pelo Estado, nem por empresas privadas, ela é totalmente independente [a principal fonte de renda da ABL são os aluguéis de um prédio comercial ao lado da sua sede]. Isso significa que essa instituição pode ter uma capacidade de ajudar a determinar o cânone. Do mesmo modo que existe no Brasil uma instituição que determina que construções devem ser tombadas, não podem ser destruídas, existe a ABL, que pode ajudar a apontar as obras que têm de ser preservadas na memória das pessoas, as obras poéticas. Essa é uma maneira de conservar a grande poesia. E isso também vale para romance, ensaio, enfim, para arte em geral.

De acordo com o seu estatuto, a ABL tem por fim “a cultura da língua e da literatura nacional”. Como você vê a interação da ABL com a cultura popular, que não está no cânone, mas que é viva, pulsante, de rua, e não passa por esses filtros?

Os preconceitos em relação à arte, que falavam de arte inferior e arte superior, estão desaparecendo. Ainda bem. O Bob Dylan ter recebido o Prêmio Nobel é maravilhoso, porque ele realmente é um dos grandes artistas da nossa época.

Você falou em alta cultura e baixa cultura. Você valora o seu trabalho de poeta numa escala diferente do seu trabalho de letrista, por exemplo?

Não, porque acho que os dois são poesia, os dois são trabalhos de poeta. A diferença não é de qualidade, não é que a poesia escrita seja melhor que a poesia cantada. Caetano é muito melhor que quase todos os poetas livrescos. As letras de Caetano ou as de Chico, ou as letras de Vinicius, que tampouco não são inferiores aos poemas que ele escrevia, são maravilhosas. O que acontece é que a obra de arte deve ser considerada como um todo. Às vezes, a letra sozinha, se for publicada, é um grande poema. Mas, de maneira geral, a letra vale na obra, isto é, na canção, que deve ser a combinação de melodia e letra. Então, por exemplo, quando eu faço um poema, eu não penso em nada, só no poema mesmo, nas coisas que me vêm à cabeça livremente, que as musas me inspiram. Mas quando eu faço uma letra de música, eu faço essa letra para a música que o meu parceiro ou a minha parceira me dá.

Você escreveu um ensaio sobre contracultura e falou da sua experiência morando em Londres no final dos anos 1960, e disse que conviver com o Caetano foi mais importante para a formação do poeta do que as aulas que você tinha na universidade.

Na adolescência, a minha formação havia sido muito erudita e muito independente. Eu gostava de ouvir as conversas de meus pais com os amigos deles, que eram intelectuais. Eu só ouvia os discos clássicos de meu pai, não ouvia música popular. Achava que aquilo era inferior. Aí uma vez o meu irmão, Roberto, que era completamente o oposto de mim e mais jovem, disse assim: você não acha bom o Bob Dylan? Você nunca ouviu direito? Aí botou um disco do Dylan para eu ouvir. Fiquei muito impressionado. Na faculdade, fui muito influenciado pelo filósofo alemão Theodor Adorno, que desprezava o que chamava de “indústria cultural”. Mais tarde, quando cheguei em Londres e conheci Caetano, fiquei encantado. A gente começou a conversar e, de vez em quando, a assistir a filmes americanos na televisão. Em matéria de cinema eu gostava de Bergman, de Antonioni, de Fellini. Eu gostava de filmes europeus, mas tinha horror ao cinema americano. Em suma, eu era um chato! Uma vez, Caetano me convidou para assistir com ele ao filme Cantando na chuva, que ia passar na televisão. Ele ia comentando cada cena, e eu fui observando como aquele filme era extraordinário. Fiquei encantado. E, depois de várias esperiências desse tipo, passei a prestar atenção às coisas pop. Por isso é que digo que conhecer Caetano foi importante para mim. Antes, eu não ligava para o mundo pop. Depois, entendi que uma obra da cultura pop pode ser tão boa quanto uma obra da cultura erudita. Muita coisa da cultura pop é muito melhor do que muita coisa da cultura erudita, a verdade é essa.

E você, que não gostava de música pop, acabou virando letrista de grandes sucessos.

Eu não planejei isso. Aconteceu quando eu estava morando na casa de meus pais com Marina [Lima, irmã de Antonio Cicero], e ela pegou um poema que eu escrevi e musicou. Depois disso, passei a fazer letras para melodias que ela compunha para mim. Tem gente que, de vez em quando, põe música num poema meu e eu gosto até, mas em geral eu nunca faço uma letra para ser musicada, eu ponho letra numa música que me dão.

 

Créditos da imagem: Pedro Colombo

Marcio Debellian
Marcio Debellian

É organizador da antologia da Revista Souza Cruz (2014) e editor desta edição. Dirige e produz filmes, espetáculos e exposições. É diretor dos documentários Fevereiros (2017) e (O vento lá fora) (2014), além de ser autor do argumento, corroteirista e produtor do filme Palavra (En)Cantada (2008). Desde 2007, vem trabalhando com a Souza Cruz no desenvolvimento de conteúdo institucional e em projetos editorais.

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