A atriz, dramaturga e diretora mineira Grace Passô, 38 anos, é considerada uma das principais vozes do teatro contemporâneo. O reconhecimento tem vindo em forma de prêmios e teatros lotados, com temporadas no Brasil e no exterior. Grace exercita sua linguagem teatral em textos com forte crítica social, propondo reflexões sobre temas como racismo e machismo. Em cartaz com os espetáculos Preto e Vaga carne, ela conta sobre sua trajetória, referências e visibilidade das questões raciais. Entrevista por Bruno F. Duarte e Marcio Debellian.
Foto: Lucas Ávila
Quem chegou primeiro: a atriz, a dramaturga ou a diretora?
A minha perspectiva do teatro partiu do trabalho de atriz. Comecei a estudar teatro com 14 anos, em um curso amador. Em seguida, fui para um curso técnico profissionalizante em Belo Horizonte. Desde essa idade não parei mais de trabalhar e de estudar teatro. Em BH existe uma profusão de companhias teatrais. Depois da escola de teatro, estive em muitas companhias da cidade. Algumas eu fundei, em outras eu entrei. Foi nesse espaço que pude experimentar os meus primeiros textos escritos e as minhas primeiras direções.
O desejo de escrever veio da vontade de criar personagens que você não encontrava nos textos teatrais? Foi uma motivação de identidade?
O exercício da escrita sempre esteve na minha vida. Tive acesso à literatura desde cedo, pelas minhas irmãs. Então, quando eu comecei a atuar, foi natural buscar uma voz mais genuína, que me representasse ou representasse os meus em uma dimensão maior. O exercício da escrita, sem dúvida nenhuma, é uma experimentação radical de identidade. Meu primeiro texto de teatro foi Por Elise, que escrevi em 2004. A possibilidade de criar um campo simbólico no qual eu me identificasse me excitava tanto que fui escrever essa peça. A partir daí, comecei a escrever outros textos e a vincular o meu trabalho teatral a escritas originais. Nem todos os trabalhos que faço são textos que escrevo, mas isso acontece muitas vezes, gosto disso.
Nas suas influências, há escritoras negras ou existia essa lacuna de voz?
Eu me lembro de ter lido Carolina Maria de Jesus muito cedo. Ela é a única escritora negra que li ainda jovem. É óbvio que com o tempo a gente vai correndo atrás. Tem várias, tem muitas escritoras [negras]. O trabalho da Cidinha da Silva é muito importante. É uma escrita extremamente contemporânea, ao mesmo tempo com ancestralidade. A Ana Maria Gonçalves escreveu Um defeito de cor, que é um livro muito importante. Vale por uma biblioteca. Tem muitas publicações do feminismo negro que contribuíram para a formação do meu pensamento.
Você encara a escrita como um espaço de poder?
Eu prefiro dizer que a escrita é um espaço de existência. É uma pena a gente viver em um mundo onde o direito à existência significa poder. Mas é verdade, significa. E quando eu digo existência, no sentido do direito de existir, é na mente, com suas identidades, suas referências, sua memória, sua cultura. Infelizmente, no Brasil, isso significa poder. No nosso país, isso é um privilégio. A escrita é um lugar onde você consegue habitar sua existência. É o espaço da sua voz, o mais próximo da possibilidade de decodificação da sua subjetividade. É um lugar de direito onde você pode existir plenamente.
Como você vê a necessidade de se enfatizar um feminismo sob o ponto de vista da mulher negra?
O desejo e a necessidade de se entender a sociedade a partir da mulher negra vem do fato de que essa mulher, ao estar na base da sociedade, tem questões relacionadas ao afeto, à sua construção social, à maternidade, ao casamento, à solidão, ao trabalho e aos tipos de trabalho que vêm desse universo. Na história do Brasil a partir do achamento e depois, a partir do momento em que o Brasil se faz colônia, existe todo um lugar em que os escravizados se fizeram e fundaram neste país, e é óbvio que mulheres e homens negros estavam ligados a funções extremamente diferentes nessa corrida colonialista. Além do impacto da corrida colonialista na formação de seus afetos, nas próprias funções dentro dos quilombos, isso resultou numa saga da mulher negra até os dias de hoje. Ela está ligada a universos específicos, preconceitos específicos, forças e potências muito específicas.
Por que demorou tanto para que essas questões passassem a ser amplamente debatidas?
É importante lembrar que não é que essas coisas não fossem ditas antes. Elas sempre foram ditas, existe uma luta que vem das militâncias negras. Isso vem de muito tempo. As questões negras são silenciadas de forma muito radical. Sempre foi fácil para mim assimilar o que estava sendo dito pelo fato de ser negra e viver essas questões cotidianamente. Por mais que você não tenha discutido isso amplamente e falado abertamente sobre essas questões, quando você as ouve, é fácil de identificar, porque são quase códigos existenciais do negro. Se hoje a sociedade pauta insistentemente questões relativas a isso, é primeiro pela insistência e luta dessas militâncias negras e também porque o negro e a negra passaram a ter mais poder de consumo. Para uma sociedade de um racismo extremo como a brasileira, isso parece nascer agora. É um pouco absurdo, mas um país que é formado majoritariamente por negros foi até muito pouco tempo silenciado de forma radical. Isso até hoje é bastante silenciado.
Qual o ponto de partida da peça Preto?
Preto é um espetáculo da Companhia Brasileira de Teatro dirigido pelo Márcio Abreu. Eu fui convidada, atuo na peça e assino o texto com mais duas pessoas da companhia [Márcio Abreu e Nadja Naira]. A peça coloca em cena seis atores, três brancos e três negros. É uma saga dessas pessoas tentando dialogar a partir de questões relacionadas à negritude. Ela acaba falando sobre possibilidades e impossibilidades desse grupo.