O que a minha avó me ensinou sobre emojis

Ilustração: Guto Lacaz/ gutolacaz.com.br

Conversávamos em um dos inúmeros aplicativos de comunicação que a vida nos oferece em 2018. A certa altura, M. falou sobre uma ideia excelente para um trabalho que faríamos juntos, e imediatamente me entusiasmei. Eis que de repente um emoji de rosto amarelo soltando um coração pela boca aparece na tela. Achei um pouco estranho que M. quisesse cortar o papo justo no momento em que tínhamos um novelo a desenrolar. De toda forma, me resignei: “Boa noite!”, escrevi. Ele logo digitou: “Isso parece consulta lacaniana”, e soltei um risinho que ele não escutou, mas que indiquei por uma sequência de consoantes: “kkkkk”. Emendei: “Achei que o seu emoji significava algo como ‘então tá, beijo’”. Ele explicou que o emoji representava uma comemoração pela sintonia de ideias. Argumentei que, nesse caso, ele deveria usar as duas mãos que simbolizam o high-five ou, em bom português, o “toca aqui”. Inseri o mesmo, a fim de ilustrar, e logo veio a pergunta: “As setinhas são energia?” Arrisquei que seriam elementos gráficos da empolgação. E me lembrei

de uma conversa que ouvi, certa vez, em um restaurante. O grupo de amigas da mesa ao lado discutia calorosamente a respeito da diferença entre o emoji de rosto amarelo que manda um beijo de coração e o que indica um beijo com a boca, da qual nada sai. O contexto era o de um flerte de uma delas, e a presença ou ausência do coração parecia balizar todo o futuro daquela relação. Tivesse coração, o caminho certamente estaria pavimentado para o florescimento do amor. Em breve, talvez, ela pudesse ostentar uma mudança de status de relacionamento nas redes sociais. A falta da forma vermelha, porém, era mau agouro. Quem duvidaria?

Não sei bem quando começamos a interpretar emojis, essas pequenas ilustrações que talvez sejam espécies de filhas de emoticons — combinações de sinais ortográficos e de pontuação que exprimem emoções mais pragmáticas como, por exemplo, esse sorriso sem dentes :). Os primeiros, bem mais elaborados e variados que seus antepassados, deveriam, portanto, passar mensagens mais claras e específicas. No entanto, muitas vezes o oposto se dá, especialmente para aqueles de nós que temos uma dose extra de paixão — ou neurose? — por palavras, interpretação e comunicação. Muitas vezes me vi diante de rostos amarelos com sorrisos pouco eloquentes, que poderiam ser interpretados de diversas formas, em consonância com o humor do dia. Se por um lado os emojis podem ser uma saída fácil para situações em que não sabemos (ou não temos) bem o que dizer, por outro podem ser ambíguos a ponto de demandar um pequeno fórum de discussão entre amigos, como o daquelas moças no restaurante. O que deixaria minha avó entisicada. Ou embatucada?

A minha avó tem 94 anos e franze a testa quando fica embatucada. Quando eu penso que ela vai dizer que estava embatucada, ela diz entisicada, e vice-versa. Só a minha avó tem sabedoria e vivência suficientes para distinguir estados de espírito que a mim parecem tão semelhantes. Ela seria uma excelente leitora de emojis. Provavelmente também não hesitaria ao estabelecer as sutis diferenças entre “lacrar” e “mitar”, termos que talvez já tenham até caído em desuso, como aqueles outros dois muito usados por ela. Minha avó é do tempo que o “y” podia ser visto em palavras como “estylo” e que havia tempo para dobrar consoantes em outras, como “belleza” ou “cabello”. É do tempo, também, em que já se discutia o acordo ortográfico entre países de língua portuguesa, quando aparentemente essas nuances e diferenças acenavam como grandes entraves para culturas separadas pelo Atlântico. Mal sabiam que a velocidade do mundo e o aparente encolhimento do tempo produziriam enxurradas de gírias, memes e modismos que nos deixam um pouco perdidos em nosso próprio território. As mudanças são tantas que, em 2015, o tradicional dicionário Oxford elegeu um emoji como verbete do ano, um rosto amarelo sorrindo com lágrimas azuis saindo de olhos fechados. A instituição deu uma bela demonstração de humor e deboche. Grande parte das reações, porém, devem ter sido expressadas por um emoji de rosto amarelo com olhos arregalados, e nada nos garante que, no começo do século XX, expressões crispadas e narizes torcidos que renderiam excelentes pictogramas não fossem a resposta corrente aos “conflictos ortográficos” de que se encarregavam linguistas e beletristas.

O meu amigo que reclamou que a conversa abreviada lembrava uma sessão de análise lacaniana é um colecionador e bom conhecedor de dicionários e gramáticas — o mesmo não se pode dizer de sua relação com emojis. Para ele, a existência, a contínua atualização e a publicação impressa de dicionários são questões simbólicas, ligadas a noções de cidadania, senso de civilidade e civilização. Um romântico, diriam alguns. Um pastiche de Policarpo Quaresma, acusariam outros, e lhe forneceriam links para dicionários on-line, além do endereço eletrônico para a emojipedia. Sim, existe, e me pergunto que imagem de civilização passaremos para gerações futuras que se deparem com ela e suas ferramentas de busca e classificação. Talvez olhem para essas tentativas de sistematização como olhamos para artigos dos anos 1930 em que se problematizavam as normatizações de acordos que já nos soam nostálgicos. Talvez fiquem embatucados. Ou entisicados. Só a minha avó decifraria.

 

Charge: André Dahmer/ andredahmer.com.br
Julia Wähmann
Julia Wähmann

Nasceu em 1982, no Rio de Janeiro. Em 2015, publicou Diário de Moscou (Megamíni/7 Letras) e André quer transar (Pipoca Press). Em 2016 e 2018, pela editora Record, publicou os romances, Cravos e Manual da demissão, respectivamente.

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