São Paulo é rua

Apesar da fama de segregada, engarrafada e urbanoide, São Paulo tem mais festas de rua que qualquer outra cidade brasileira

Eventos como a Virada Cultural, o renovado carnaval de rua e a ocupação da avenida Paulista com dezenas de shows musicais aos domingos são apenas a ponta de lança de uma tradição paulistana surpreendente para o forasteiro.

Há eventos que fazem parte do calendário da cidade há décadas, como a Festa de Nossa Senhora de Achiropita (Festa da Querupita para os íntimos), no enclave italiano do Bixiga, e suas correspondentes na Mooca, a Festa de San Genaro, e, no bairro do Brás, a Festa de São Vito Mártir — todas com fartas doses de pasta, vino e tarantella. Multidões enchem as ruas atrás de comida típica também nos festejos do Ano Novo Chinês e da semana de Tanabata Matsuri, festa japonesa, ambas no bairro da Liberdade. Os carros dão passagem aos pedestres no viaduto do Minhocão, que será transformado em parque, e as praças da República e Dom José Gaspar costumam abrir espaço para festas de música eletrônica.

O que une espaços e culturas tão distintas durante o ano inteiro é o mesmo espírito de convívio democrático, o que comprova certa vocação cosmopolita da cidade de São Paulo — ainda que não esconda suas contradições. Como exemplo, vou falar
de duas das experiências mais interessantes que tive por aqui nos últimos anos: a feira da praça Kantuta, de imigrantes bolivianos, e uma roda de sample, festa de música eletrônica no Vale do Anhangabaú.

 

Feira dos Bolivianos – Pari

Ir à feira na praça Kantuta, no bairro do Pari, aos domingos, não é apenas visitar a Bolívia. É estar num mercado no subúrbio de Oruro, no altiplano boliviano. A menos de um quilômetro do Estádio do Canindé, é como se tivéssemos subido milhares de metros de altura — e também voltado algumas décadas no tempo.

Talvez sejam os penteados extravagantes que dão forma aos cabelos muito pretos e lisos dos bolivianos, alguns esculpidos ali mesmo, em barbearias com extensos menus de penteados à mostra. Ou a moda discreta das moças, as mesas de pebolim, os cartazes antigos, as verduras desconhecidas nas bancas da feira, a música folclórica embalando o movimento ao redor da praça de cidade pequena — casais de mãos dadas, crianças aloprando soltas. Nós, os brasileiros, ali somos minoria.

Pouco faz lembrar o intenso movimento durante os dias úteis no bairro, um dos maiores polos da indústria de confecções do país. Quando a tarde cai e começamos a devorar chicharrónes, anticuchos e salteñas bebendo uma Inca Kola peruana amarelo-radiação, a vida no Pari parece boa e justa, os 200 mil bolivianos que moram na cidade bem-
-adaptados e unidos, novos cidadãos deste ímã imperialista do hemisfério Sul, capital econômica da América Latina, importadora de mão de obra e exportadora de grana: São Paulo, terra dos bravos e das oportunidades.

Evidentemente, não é bem assim. A feira termina com cones de plástico que separam suas vias organizadas de uma multidão de bolivianos que ocupa a rua escura. À medida que saímos, somos cercados pelo balbucio discreto de homens e mulheres que nos cercam num corredor polonês. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar por um discreto oferecimento: cartões com nomes e telefones e peças de roupa como amostras de trabalho.

A experiência boliviana no eldorado paulistano pode incluir passeios felizes e danças em tardes como esta — e também noites tristes de domingo sem emprego, buscando um trabalho que dificilmente irá respeitar direitos trabalhistas. Quando anoitece no Pari, as ruas rudes e obscuras da cidade ultrapassam o rio Tietê, elevam-se pelos Jardins até o planalto iluminado da avenida Paulista, onde manequins vestirão peças de roupas cerzidas em oficinas invisíveis.

 

Roda de sample – Vale do Anhangabaú

Entre os imponentes prédios da prefeitura e do Shopping Light, por baixo do viaduto do Chá e por cima do mergulhão da Nove de Julho, há um amplo descampado de pedras portuguesas com árvores esparsas. Nessa parte do Vale do Anhangabaú, onde um dia passou um rio que os índios consideravam venenoso, pode se contemplar a eclética arquitetura do centrão paulistano, de edifícios afrancesados e retângulos modernistas. A monumental extensão da laje reforça a solidão dos poucos pedestres — o lugar tem fama de perigoso, terra de cracudos, ainda mais num final de semana.

No horário marcado para a festa, às quatro da tarde de um sábado calorento, o som ainda não estava ligado e muito menos o público por lá. Apenas a kombi dos organizadores descarregando equipamentos e os habitantes da parte inferior do viaduto, ainda recém-
-despertos, saindo das barracas de acampamento que têm como residência. Estranhando a invasão do seu jardim, um grupo de jovens moradores de rua com camisas de futebol cercou os músicos e começou a fazer perguntas — “É funk o baile, tio?”. Alguns deles levavam garrafas de plástico com solventes que cheiravam entre uma frase e outra.

Aos poucos, máquinas foram amontoadas umas sobre as outras numa mesa de madeira — uma série de caixas com botões iluminados, sintetizadores, mesas de som e computadores enredados por cabos e fios elétricos num arranjo caótico. Logo, uma dezena de sujeitos brancos e barbudos se debruçam como crianças grandes brincando num laboratório de experimentos eletrônicos, dando início à colagem sonora, sempre com um bumbo marcando o grave em 4/4. Manipulando samples pré-gravados e timbres ao vivo, criam um caldeirão eletrônico com camadas e camadas de loops.

Os moradores do vão do viaduto do Chá viram seu recanto ser tomado por gente de rave, camisetas pretas, anfetaminados em geral, loiras de calça de lamê, homens vestidos de mulher e vice-versa. Noias da região do Theatro Municipal e comerciantes da região também cerraram fileiras, tentando entender o que estava acontecendo. O público chegou ao mesmo tempo e lotou o vão do Chá quase de uma ponta a outra.

Assim que o som começa a ecoar pelas estruturas de concreto, vendedores de cerveja aparecem de todos os cantos da praça, cercando o público num largo semicírculo. No início da festa, há evidente tensão e os ambulantes tentam evitar furtos — como o evento não tem apoio oficial, eles fazem as vezes de segurança. Os meninos moradores do Chá passam entre nós comentando o modelo dos celulares nas mãos dos estrangeiros. Eles terão sorte algumas vezes na justíssima redistribuição marginal de renda involuntária, como diz um amigo economista.

Nada que impeça a continuidade do baile e suas ilusões. Até porque logo teremos um fragilíssimo instante de paz, quando um dos meninos é chamado pelos músicos na roda e começa a tocar uma bateria eletrônica. É uma miragem: a violência da desigualdade nunca dá trégua. Longe da sociologia, os outros garotos chegam junto e começam a dançar — pelas horas seguintes, coisa rara, irão se divertir na mesma pista dos donos dos celulares que têm nos bolsos. E todos muito felizes no fervo — até os roubados, dizem. Mas sempre é uma felicidade meio triste a nossa.

J. P. Cuenca
J. P. Cuenca

É escritor e cineasta carioca. Desde 2003, escreve crônicas para os principais jornais do país. É autor dos romances Corpo presente (2003), e Descobri que estava morto (2016), vencedor do Prêmio Biblioteca Nacional de Melhor Romance, entre outros. Em 2015, dirigiu seu primeiro longa-metragem, A morte de J. P. Cuenca.

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