Vozes e corpos livres

Elxs se libertaram dos padrões de gênero, fazem sucesso (muito sucesso) sendo quem decidiram ser e protagonizam um novo e representativo capítulo na história da música brasileira.

foto: Barbara Gabrielle @barbaragabriellee

Eram anos de 1970 quando dois grupos começaram a desafiar o que se convencionava chamar de masculinidade. De um lado, o coletivo teatral Dzi Croquettes. Do outro, um fenômeno na música brasileira, o Secos e Molhados, que revelou Ney Matogrosso. Ambos não só de grande relevância artística, como de importância para a cultura comportamental brasileira. Esses dois agentes na cena artística brasileira abriram caminhos para que, somente 40 anos depois, uma nova liberdade comportamental surgisse e, principalmente, a diversidade fosse muito além.

É o que afirmam representantes desses novos tempos, que veem esses artistas como responsáveis pelos caminhos que se abriram para que a própria questão de gênero fosse ressignificada. Se naquela época tínhamos homens cis rompendo fronteiras, hoje esse espaço é ocupado não só por gays, mas por travestis, transexuais e drag queens que chegaram revolucionando a música e seus gêneros.

Uma das maiores artistas nacionais da música pop brasileira dos últimos tempos é uma drag queen nascida no Maranhão, criada no Pará e hoje radicada em Uberlândia, Minas Gerais, que atende por Pabllo Vittar. O pronome pode ser no masculino ou no feminino, especialmente quando está montada. Elx convive muito bem em seu trânsito particular.

Com mais de 6 milhões de seguidores no Instagram (a drag mais acompanhada nas redes do mundo, superando os números de RuPaul, a apresentadora do reality RuPaul’s Drag Race), e clipes com quase 300 milhões de visualizações (os hits K.O. e Corpo sensual, além de Sua cara, do Major Lazer, de Diplo, em que faz participação com Anitta), Pabllo, que chegou a trabalhar em salão de beleza pra ajudar nos custos da casa, é uma superstar.

É reconhecida (montada ou desmontada) e seguida por uma horda de fãs em qualquer cidade a que elx chegue, algo já conferido ao vivo pelo repórter em cidades diferentes. E elx tem rodado e provocado muita histeria pelo país com sua frenética agenda de shows, entrevistas e campanhas publicitárias. E tudo isso numa velocidade de menos de um ano.

Os números dizem por si: Pabllo é ponta de lança dessa cena que formou e ainda forma muitos nós nas cabeças das tradicionais famílias brasileiras. Elx tem total consciência da importância que exerce para essa nova representatividade, mas não faz de suas canções atos políticos, nem gosta de ficar toda hora tendo que se afirmar. Sua existência diz por si só. “Está tudo lá, não tem o que ficar falando. Uma drag em cima do palco, no país que mais mata LGBTs no mundo. Isso já diz tudo”, declarou elx recentemente em uma capa para a Rolling Stone.

O leque de artistas dessa cena com espaço no mercado é muito maior que o dos idos de 1970 — e não para de crescer. De quatro anos pra cá, vimos surgir o que a crítica tentou aglutinar como “geração tombamento” — uma galera que chegou com pé na porta trazendo novas identidades musicais. O termo é questionado por seus representantes, que gostariam de ver as atenções mais voltadas para seus atributos musicais. Mas um fato é incontestável: na história da música brasileira está reservado um capítulo pra elxs por tudo que representam.

“Na história, a gente precisa de um tempo pra dimensionar os fatos, a gente entende melhor à distância. Sabemos que é um passo histórico, mas só vamos aferir as consequências disso daqui a alguns anos”, comenta a transexual Assucena Assucena, que lidera, com a também trans Raquel Virgínia, o grupo As Bahias e A Cozinha Mineira.

Outra revelação da música brasileira, a cantora paulista Liniker no começo da carreira chegou a se declarar agênero até se afirmar, mais tarde, como mulher. “Foi um processo muito íntimo”, diz. “É uma liberdade que sinto de mim mesma, de me olhar no espelho e me sentir dona de mim.”

De si e de sua carreira. A chegada de Liniker na cena também foi estrondosa. Seu maior sucesso, Zero, viralizou na internet — com mais de 15 milhões de visualizações no YouTube —, e logo chamou atenção de público e crítica. Além da voz poderosa, grave e rouca que emula os grandes do jazz e do soul, sua presença despertou curiosidade. E se somou a uma cena onde liberdade é requisito número um.

Para ela, se afirmar é necessário e poderoso. “É importante se colocar. A liberdade da nossa geração vem de antes, de pessoas que ajudaram a abrir esses espaços. A gente via tudo tão dentro de um único padrão… Eu fico muito feliz de hoje ver uma cena em que me reconheço”, comenta.

O rapper paulistano Rico Dalasam foi um dos primeiros a se destacar nessa nova cena. Em um universo até então (ou hoje um pouco menos) machista, o rapper rompeu os paradigmos do gênero. Gay, com figurinos fashionistas e um single que falava justamente sobre se aceitar (Aceite-C), Rico observa um detalhe que os distanciam dos Dzi Croquettes e de Ney Matogrosso: a marginalidade.

“Acho que a grande diferença da gente pra eles é o ponto de partida. Porque os movimentos muitas vezes nascem de universidades e a maioria das pessoas desse momento vieram das periferias, não só das grandes cidades, mas também de fora do eixo Rio-São Paulo. Essa é a principal característica e um código muito importante na hora de descrever essa turma”, sublinha Rico.

Algumas dessas novas caras que Rico cita já transbordam para outros meios e lugares. Crescida na periferia de São Paulo, a atriz e cantora trans MC Linn da Quebrada viu sua história contada no filme Bixa travesty, de Claudia Priscila e Kiko Goifman. O longa estreou no Festival de Berlim, um dos mais importantes do mundo, e saiu de lá com o Prêmio Teddy, dedicado a produções que trazem a temática LGBT.

Ao contrário da maioria de seus pares, Linn da Quebrada explora (e muito) a questão da sexualidade, seu meio social e sua raça em seus funks. Fala sobre o direito a ser afeminado e sobre “enviadecer”. “Eu gosto mesmo é das bixas, das que são afeminada (…) Se tu quiser ficar comigo, boy, vai ter que enviadescer”, diz a letra. Bixa preta também fala sem firulas sobre a cor de sua pele: “eu sou uma bicha louca, preta, favelada / Quicando eu vou passar e ninguém mais vai dar risada (…) A minha pele preta é meu manto de coragem / Impulsiona o movimento / Envaidece a viadagem”.

Vinda de uma educação religiosa rígida, ex-Testemunha de Jeová, Linn da Quebrada arrebentou as amarras, como relatou em uma entrevista. “Tive o corpo muito disciplinado, domesticado pela Igreja e pela doutrinação, que me privava dos meus desejos. Era como se ele não me pertencesse, até eu tomar o bastião de liberdade há alguns anos.” A liberdade está no meio de nós. Amém!

Pedro Henrique França
Pedro Henrique França

É jornalista e roteirista. Já escreveu para publicações como O Globo, GQ, Vogue, Folha de S. Paulo e Estadão. É autor do documentário Ecos e atualmente dedica-se a projetos audiovisuais no Recife, onde está morando após temporadas em Nova York e no Rio de Janeiro.

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